quarta-feira, 14 de março de 2012

DESOVA EM IPANEMA, DE ZUENIR VENTURA



O escritor mineiro Zuenir Ventura escreveu e publicou a Crônica "Desova em Ipanema", numa sexta-feira, 28 de março de 2008.

Leia-a.


Em matéria de violência, já vi de tudo em Ipanema, ou achava que já tinha visto. Já encontrei bala perdida no terraço (felizmente estávamos viajando); ajudei a socorrer uma moça atingida por tiro num assalto na porta de casa; presenciei a banca de jornais em frente ser roubada pela oitava vez e o dono, Seu Vieira, ser baleado (Graças a Deus escapou, e passou o negócio); corri de arrastão e assisti numa manhã típica de Bagdá pessoas procurando se esconder ou se jogando no calçadão e na areia para se livrarem de um tiroteio. Mas o que aconteceu domingo de madrugada, isso foi inédito: um corpo no porta-malas de um carro na minha calçada, em uma das principais ruas do bairro, a 50 metros de uma viatura da PM ali estacionada. Ipanema, um dos mais altos IDHs da cidade, o mítico e hedonista cartão-postal do Rio, virar ponto de desova é demais. Sou do tempo em que essa prática sinistra já existia, mas os bandidos tinham mais respeito pelos mortos, eram menos acintosos, buscavam lugares distantes, ermos, não em frente ao prédio em que morou Vinicius de Morais, ele mesmo, o da Garota de Ipanema. Imagino como Tom Jobim recebeu a notícia de que aquele seu paraíso virou lugar de desova de corpos executados.
Por que achar que Ipanema, pelos seus belos olhos, estaria a salvo, posto que nenhum bairro está hoje imune à barbárie? Não é ingenuidade nem pretensão, é que a gente se choca mais com o que acontece no seu próprio quintal, na sua calçada. Por questão de minutos, eu quase assisti a mais essa cena, ao chegar um pouco antes de um jantar com amigos. Por isso, entendi o desabafo da leitora Ângela de Almeida. "Fomos vizinhos durante anos e até nos cumprimentávamos, mas nunca tivemos ocasião de conversar", disse ela num e-mail indignado em que explicava porque se mudara daqui. Queria sossego. "Havia me cansado das Bandas, Raves e da guerra constante entre nós, os contribuintes, e a desordem urbana". Mudou-se então para o Jardim Oceânico, onde achava ter encontrado "paz e passarinhos", e onde "não escutava mais o carnaval de rua". Até que abriu o jornal na segunda-feira e viu a notícia do corpo deixado na rua em que morou e de dois assassinatos na Avenida das Américas, "agora perto de mim".
Não adianta fugir. Houve uma época não muito distante em que se dizia: "na Barra não tem assalto". Segundo ela, a Barra e o Recreio agora saíram do mapa do governo e da polícia. "Todos corremos risco como em Gaza, como no Iraque, e dizem ainda que não estamos em guerra". Os filhos de Ângela lhe ensinaram que "viver com medo é viver pela metade". O problema é que "até eles agora estão assustados". Ela pergunta se o nosso destino é "viver só um pouquinho. Existe algum alento? Até quando nossos governantes vão fechar os olhos?". Com a resposta os governantes.
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Postado por DuDu.
Marcadores: Desova, Ipanema, Zuenir Ventura

FELIZ ANO NOVO, DE RUBEM FONSECA

Leia na íntegra "Feliz Ano Novo", do mineiro Rubem Fonseca.

Texto Publicado em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/f/feliz_ano_novo
Acesso em 14/03/2012, às 14:21.




Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.
Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.
Vai mijar noutro lugar, tô sem água.
Pereba saiu e foi mijar na escada.
Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.
Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?
Tô morrendo de fome, disse Pereba.
De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.
As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?
Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.
Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.
Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.
Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?
Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.
Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.
No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.
As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.
Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.
Ela tava nua, disse Pereba.
Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.
Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.
Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.
Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago — pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.
Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.
Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.
Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.
Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.
As ferramentas dele tão todas aqui.
Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.
Eu ri.
Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.
Puta que pariu, disse Zequinha.
E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?
Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.
Fumamos. Esvaziamos uma pitu.
Posso ver o material?, disse Zequinha.
Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.
Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.
O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.
Já, eu disse, está lá em cima.
A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.
Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.
É antiga mas não falha, eu disse.
Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.
Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.
Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.
Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.
Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.
É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.
É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.
Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.
Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.
Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?
Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.
Cara importante faz o que quer, eu disse.
É verdade, disse Zequinha.
Ficamos calados, fumando.
Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.
O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?
Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.
Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.
O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.
Que casa? Você tem alguma em vista?
Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.
Coloquei a lata de goiabada numa saca de feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.
Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.
É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!
Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.
Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.
Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.
Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.
Crianças?
Estão em Cabo Frio, com os tios.
Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.
Gonçalves?, disse Pereba.
É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.
Inocêncio, amarra os barbados.
Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.
Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.
Pereba desceu as escadas sozinho.
Cadê as mulheres?, eu disse.
Engrossaram e eu tive que botar respeito.
Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha.Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.
Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.
Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.
Como é seu nome?
Maurício, ele disse.
Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.
Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.
Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.
Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.
Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.
Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha. Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
Eu não disse? Zequinha esfregou o ombro dolorido. Esse canhão é foda.
Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.
Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.
E você... Inocêncio?
Acho que vou papar aquela moreninha.
A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.
Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.
Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.
Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.
Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.
Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.
Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?
Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.
Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.
Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.
Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.
Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo.
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FIM

A CRÔNICA E SEUS VARIADOS TIPOS...


Crônicas(reflexiva, narrativa, dissertativa, narrativa-descritiva, humorística, lírica,poética...)


Segundo Moacir Amâncio, a crônica, oficialmente, não existe. Mas, como ocorre com bruxas, há sempre alguém disposto a testemunhar que já a viu - e nas mais diferentes formas. Pode aparecer na forma de comentário sobre a cena política, ou como um recorte da infância. Ontem, disfarçou-se em digressões sobre o cotidiano. Amanhã, será poema em prosa. Às vezes exibe-se como trecho de algum romance que vai consumindo o autor ao longo de muitas madrugadas. Assume ainda características de ensaio, ou de experimentação estilística. Pode ser brincalhona, amarga, profunda, superficial, atrevida.

Tentativas de enquadrá-la com rigor em algum gênero não parecem recomendáveis. Catalogar a crônica como gênero menor, por exemplo, esbarra na evidência de que não existem gêneros menores. Há grandes e pequenos romancistas, grandes e pequenos poetas, grandes e pequenos contistas. Também há bons e maus cronistas. Contrapô-la ao conto é imaginar, equivocadamente, que crônicas seriam apenas histórias breves, inferiores ao conto em qualidade, densidade ou qualquer outro substantivo invocado para comparações dessa espécie. Numa frase: a crônica não passaria de conto leve e leviano. Mas como aplicar tal definição às obras-primas de um Rubem Braga ou um Fernando Sabino?

Inconstante, descompromissada, libertária, a crônica é avessa a regras e incompatível com camisas-de-força. Nos tempos da Província de São Paulo, por exemplo, já foi até anônima.

Raul Pompéia e Olavo Bilac assinavam textos curtos. Euclides da Cunha, Monteiro Lobato - obcecado com a questão da dicotomia atraso-progresso – publicavam, sem limitação de espaço, textos à altura das obras que lhes asseguraram uma vaga entre os grandes autores da língua portuguesa.

Além disso há outras particularidades: por exemplo ao perguntarem a Rubem Braga o que era a crônica, ele respondeu: "Repare bem: se não é aguda é crônica!".


CRÔNICA REFLEXIVA - Camila Magalhães de Lima


Crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser veiculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e pré-determinada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o lêem.
A crônica é primordialmente, um texto escrito para ser publicado no jornal. Assim o fato de ser publicada no jornal já lhe determina vida curta, pois à crônica de hoje seguem-se muitas outras nas próximas edições. Há semelhanças entre a crônica e o texto exclusivamente informativo. Assim como o repórter, o cronista se inspira nos acontecimentos diários, que constituem a base da crônica. Entretanto, há elementos que distinguem um texto do outro. Após cercar-se desses acontecimentos diários, o cronista sá-lhes um toque próprio, incluindo em seu texto elementos como ficção, fantasia e criticismo, elementos que o texto essencialmente informativo não contém. Com base nisso, pode-se dizer que a crônica situa-se entre o Jornalismo e a Literatura, e o cronista pode ser considerado o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia.

A crônica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado em primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está "dialogando" com leitor. Isso faz com que a crônica apresente uma visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista. Ao desenvolver seu estilo e ao selecionar as palavras que utiliza em seu texto, o cronista está transmitindo ao leitor a sua visão de mundo. Ele está, na verdade, expondo a sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam. Geralmente, as crônicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral e literária. Isso contribui também para que o leitor se identifique com o cronista, que acaba se tornando o porta-voz daquele que lê.
Em resumo, podemos determinar cinco pontos: narração histórica pela ordem do tempo em que se deram os fatos; seção ou artigo especial sobre literatura, assuntos científicos, esporte etc., em jornal ou outro periódico; pequeno conto baseado em algo do cotidiano; normalmente possui uma crítica indireta; muitas vezes a crônica vem escrita em tom humorístico.

A palavra crônica tem sua origem na palavra grega chronos, que tem seu significado relacionado ao tempo."Lembrar e escrever: trata-se de um relato permanente relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido." (ARRIGUCCI, 1987,p. 51)

Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição...o fato de ficar tão perto do dia-a-dia age como quebra do monumental e da ênfase...Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma belezaou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, - sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.(CANDIDO,1992, 13 e 14)


Tipos de crônicas:


a) CRÔNICA DESCRITIVA - ocorre quando uma crônica explora a caracterização dos seres animados e inanimados num espaço. Viva como uma pintura, precisa como uma fotografia ou dinâmica como um filme publicado;
b) CRÔNICA NARRATIVA – tem por eixo uma história, o que a aproxima do conto. Pode ser narrado tanto na 1ª quanto na 3ª pessoa do singular. Texto lírico (poético, mesmo na prosa). Comprometido com fatos cotidianos ("banais", comuns);
c) CRÔNICA DISSERTATIVA – opinião explícita, com argumentos mais "sentimentalistas" do que "racionais". Exposto na 1ª pessoa do singular quanto na do plural;
d) CRÔNICA NARRATIVO-DESCRITIVA – é quando uma crônica explora a caracterização de seres, descrevendo-os. E, ao mesmo tempo mostra fatos cotidianos no qual pode ser narrado em 1ª ou na 3ª pessoa do singular;
e) CRÔNICA HUMORÍSTICA – apresenta uma visão irônica ou cômica os fatos;
f) CRÔNICA LÍRICA – linguagem poética e metafórica. Expressa o estado do espírito, as emoções do cronista diante de um fato;
g) CRÔNICA POÉTICA – apresenta versos poéticos em forma de crônica;
h) CRÔNICA REFLEXIVA – reflexões filosóficas sobre vários assuntos. Apresenta uma reflexão de alcance mais geral a partir de um fato particular. É um texto analítico em que o cronista analisa o tema ligado à condição humana. Escrito em 1ª pessoa, a crônica não tem estrutura fixa, predomínio da linguagem coloquial, dialogismo com o leitor, que conferem ao texto um tom de conversa íntima, predomínio de recursos estilísticos: metáforas, comparações analogias etc. O assunto é abordado a partir da visão subjetiva do autor.



Na crônica "EU E BEBU NA HORA NEUTRA DA MADRUGADA", Rubem Braga desenvolve uma narrativa em 1ª pessoa que relata um dia inteiro e ele passa na companhia do Diabo, o qual ele cria uma certa intimidade e passa a chama-lo de Bebu, por Belzebu: "À tarde, eu já não o chamava de Belzebu, mas apenas de Bebu, e ele me chamava de Rubem." ( BRAGA,1998,p31).

Alfredo Bosi tem analisado, com argúcia e fecundidade, o que chama de materialismo animista (porque fundado na junção de corpo e alma), para explicar o modo de ser de toda nossa cultura popular, conforme ela se mostra no cotidiano do pobre. Neste, costumam fundir-se as esferas do trabalho manual, das necessidades básicas, da obrigada e difícil sobrevivência e as das crenças religiosas, superstições, de todo imaginário e produto mental, num mundo misturado e único-mundo esse, ao contrário do da racionalidade burguesa, nem um pouco desencantado, para empregar os mesmos termos de Max Weber utilizados pelo crítico...

Ainda no caso de mais modesto de Braga, a crônica toma uma forma realista que se plasma com essa matéria mesclada do cotidiano, aspirando, humildemente, à comunicação humana e fazendo da solidariedade social umvalor básico, a ser buscado sempre, apesar de certo ar de leão-marinho, soturno e solitário, que às vezes mostra o cronista. Sua disposição intrínseca para a percepção do poético no cotidiano popular, além da tendência modernista, via Bandeira, só pode ter sido facilitada e estimulada pela sua formação interiorana, com seus elementos de uma experiência mais socializada, no espaço rústico, à beira-rio ou à beira-mar, pela proximidade das pessoas humildes, que tanto aparecem nas crônicas, no lado de formas do trabalho manual, pelas quais sempre demonstrou o maior interesse e atenção. (ARRIGUCCI,2001, 17,18 E 19)

Nesta crônica referida, Braga desenvolve um processo reflexivo através da apresentação dos fatos. A história é narrada e coloca o leitor diante de diferentes pontos de vista em relação ao Bem e Mal. O diálogo entre Rubem e Bebu, oferece ao leitor a oportunidade de ver o ponto de vista de quem é discriminado, e dessa forma a reflexão surge para o leitor de modo natural. Uma análise profunda de valores sociais e espirituais, vinculados ao modo de vida e cultura popular. A crônica sugere de forma sucinta uma revisão dos conceitos humanos, formado ao longo do tempo. "- Há o Bem e o Mal, mas não é como você pensa. Afinal quem é você? Em que você pensa? Com certeza naquela moça que vende cigarros, de olhos de garapa, de cabelos castanhos..." (BRAGA,1998, P.32)

Na crônica "UM PÉ DE MILHO", o cronista mais uma vez induz o leitor à uma reflexão. A crônica está em 1ª pessoa eapresenta uma narrativa de punho íntimo que revela ao leitor a origem do escritor, seu íntimo e a realidade em que vive. Parece uma meditação lírica de um Eu que narra, mas aparenta estar falando sozinho, recordando e refletindo sobre a própria vida. "Sou um ignorante, um pobre homem de cidade. Mas eu tinha razão..." ( BRAGA,1998,p.42).

Dentro da crônica existe um fluxo narrativo intenso, que oferece ao texto um ritmo que enfatiza o tempo do que é narrado, dando uma importância de destaque à experiência vivida. Além da utilização de metáforas e simbologias que oferecem um lirismo constante no corpus do texto: "... mas na glória do seu crescimento, tal como o vi em uma noite de luar, o pé de milho parecia um cavalo empinado, as crinas ao vento - e em outra madrugada parecia um galo cantando." (BRAGA,1998,p.43)
A crônica se refere à roça e à cidade, causando uma mesclagem entre as duas através do ser humano. Um homem que carrega uma cultura do meio rural, mas vive atualmente na cidade. Resgata sua origem através de um pé de milho, que metaforiza a presença do ser fora do seu habitat natural. Esse resgate da origem confere ao homem um conforto e preenchimento pra alma. " E eu não sou mais um medíocre homem que vive atrás de uma chata máquina de escrever: sou um rico lavrador da Rua Júlio Castilhos." ( BRAGA,1998, p.43)

Dentro dessa experiência narrada, o autor oferece ao leitor a oportunidade de fazer uma auto-análise, conferindo a si mesmo seus valores. "No centro da obra narrativa de Rubem Braga estará talvez o desconcerto do narrador tradicional, cujo saber, fundado numa experiência comunitária de outros tempos, perde a eficácia no mundo moderno. É muito perceptível a dificuldade desse narrador para generalizar a experiência pessoal, transformando-a em conselho prático para os outros, ao mesmo tempo que essa experiência em si mesma se vai tornando cada vez mais rala, num mundo que adotou o ritmo desnorteante das mudanças contínuas e imprevisíveis." (ARRIGUCCI, 2001, p.25)


Na crônica "SOBRE O AMOR, ETC.", Rubem Braga trás de forma filosófica uma análise do ser humano e seus sentimentos. O texto parece um monólogo interior, mas oferece diretamente uma mensagem ao leitor, diferentemente das outras duas crônicas, que induziam à reflexão de forma indireta, esta aplica uma análise filosófica do que é o amor e configura a mesma sugerindo-a ao leitor como conselho. O autor busca o leitor para a analise e chama a atenção dele para a mesma conclusão: "De onde concluireis comigo que o melhor é não amar..." (BRAGA,1998,p.89)


A temática do amor é universal, por isso pode ser voltada a todos os tipos de leitores. Rubem Braga, na ausência de assunto ou acontecimentos, busca no próprio âmago a essência do que vai falar. Dentro da falta de assunto, ele retira algo pra ser falado. No caso dessa crônica, Rubem buscou a Razão e o Amor para mostrar dois pólos como opostos e impossível de conciliar. "Têm razão; mas não têm paixão...Assim somos na paixão do amor, absurdos e tristes. Por isso nos sentimos tão felizes e livres quando deixamos de amar...Até que começamos a desconfiar de que estamos sozinhos e ao abandono trancados do lado de fora da vida." (BRAGA,1998, p. 88)


Desde o princípio, deve ter sido difícil dizer, com precisão crítica, o que eram aquelas crônicas. Pareciam esconder a complexidade pressentida sob límpida naturalidade. Disfarçavam a arte da escrita numa prosa divagadora de quem conversa sem rumo certo, distraído com o balanço da rede, passando o tempo, mais para se livrar do ócio e do tédio, sem se preocupar com o jeito de falar. E, no entanto, uma prosa cheia de achados de linguagem, conseguida a custo, pelejando-se com as palavras: um vocabulário escolhido a dedo para o lugar exato; uma frase em geral curta, com preferência pela coordenação, sem temer, porém, curvas e enlaces dos períodos mais longos e complicados; uma sintaxe, enfim, leve e flexível, que tomava liberdades e cadências da língua coloquial, propiciando um ritmo de uma soltura sem par na literatura brasileira contemporânea. (ARRIGUCCI, 2001, p.6)


Nas crônicas analisadas neste artigo, temos a reflexão presente em todas, as duas primeiras de forma indireta e a terceira como conselho a refletir. Os temas tratados são universais: Bem e Mal, Identidade e Amor (respectivamente). Dentro dessa temática percebemos a polaridade e a tentativa de quebra das mesma, pelo autor – através de análise. Exemplo: com a reflexão passamos a ver a possibilidade do Bem e Mal num mesmo ambiente, da junção da cidade e zona rural, da identidade formada com aspectosculturais diferentes e a convivência da paixão do amornum aspecto racional.
Todas essas análises configuram a visão de mundo do autor, que coloca suas crenças de forma clara excitando o leitor a pensar por um ângulo diferente e descobrir o seu próprio ponto de vista. Mesmo usando crônica narrativa, poética ou filosófica, Rubem Braga dá esse tom reflexivo, que causa impacto no cotidiano do leitor, que passa a pensar em coisas do dia-a-dia, mas que muitas vezes não são analisadas.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAGA, Rubem. 200 Crônicas Escolhidas: as melhores de Rubem Braga.11ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 1998.
CANDIDO, Antonio. A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. In – A Vida ao Rés-do-Chão. Campinas, SP. Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
ARRIGUCCI Jr., Davi. Braga de novo por aqui. 11ª edição. São Paulo: Global Editora, 2001.
ARRIGUCCI Jr., Davi. Enigma e Comentário, ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Editora Schwarcz, 1987.



Literatura e crime - Roque de Brito Alves

Publicado no Diario de Pernambuco - 18.11.2009

1 - Sem dúvida, o crime sempre foi fonte de inspiração literária, desde a citação da morte de Abel por Caim na Bíblia, pois o fenômeno humano e social existente na arte não podia ignorar o grande conteúdo humano e social do delito e do delinquente. Inegável, assim, a grande afinidade entre a obra de arte em geral e sobretudo a literatura e a criminalidade. Se a arte inspira-se na vida, reflete a realidade, busca expressar também o homem e a sociedade não podia desconhecer o fenômeno humano e social do crime (antes do seu aspecto jurídico-penal), especialmente a personalidade do delinquente. Tal finalidade não pode, entretanto, chegar ao exagero do poeta inglês Thomas de Quincey ao afirmar, no século 19, que o homicídio era uma das Belas Artes...

2 - Em intuição genial sobre o crime e o criminoso, encontramos a literatura dos grandes trágicos gregos (400 a 500 anos antes de Cristo) Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, com personagens como o parricida Édipo, Medéia (assassina dos filhos), Electra, etc., onde a alma humana criminosa é descrita em páginas imortais. Posteriormente, na Idade Média os vícios, os pecados, os delitos na descrição da Divina Comédia de Dante, sobretudo no Canto "O Inferno". A tragédia grega, é símbolo de assassinatos, incestos, adultérios, dominada pelo destino ("Ananké") como fatalidade e produto da herança como causa maior do delito, o que foi erroneamente defendido no século 19.

3 - Com Shakespeare (1564-1616), o mestre maior das paixões humanas, os seus personagens tornaram-se modelos ou tipos de criminosos como "Hamlet" - o delinquente louco -, "Othello" - o criminoso passional -, "Macbeth" - o delinquente por ambição política, com a Lady Macbeth como símbolo maior da criminosa perversa, -, "Ricardo III" - o delinquente por complexo de inferioridade -, com análises que no séc. 19 a ciência veio a confirmar sobre o fenômeno geral da criminalidade.

4 - Nesta síntese, já no séc.19, os seus grandes romancistas como Dostoievsky (sobretudo em "Crime e Castigo" com o seu personagem Raskolnikof com o seu "complexo de culpa, o problema penitenciário em "Recordações da Casa dos Mortos") o romance naturalista de Zola "A Besta Humana" (com o personagem Jacques Lantier inspirado na obra "O Homem Delinquente" de Lombroso como um criminoso nato) além de suas outras obras como "Nana", Tereza Raquin, "Germinal", etc.; o romance psicológico de Eça de Queiroz, em Portugal, com "O Crime do Padre Amaro", é a loucura moral dos personagens de "O Intruso" de D'Annunzio e de "Os Subterrâneos do Vaticano" de Gide, é o adultério do romance "Madame Bovary" de Flaubert, o criminoso romântico Jean Valjean de "Os Miseráveis" de Victor Hugo, são os crimes baseados nas perversões sexuais do Marquês de Sade no séc. 18. Além disso, embora não seja crime constatou-se o aumento do suicídio devido a influência do livro "Werther" de Goethe. Nas últimas décadas do século 20 o romance policial de Agatha Christie com os seus enredos criminosos bem detalhados.

5 - Em nossopaís, basta citar os romances de José Lins do Rego, José Américo de Almeida, de Jorge Amado, o teatro de Nelson Rodrigues, etc., com descrições de delinquentes das áreas rurais e urbanas - cangaceiros, pistoleiros, delinquentes fanáticos, anormais, etc.,- em um grande documentário de valor literário e útil cientificamente para o estudo da criminalidade nacional.

6 - Assim sendo, a literatura estrangeira e nacional está cheia de tipos criminosos e inúmeras formas de delitos, comprovando a nossa tese no sentido de que a intuição da arte sobre o crime e o criminoso sempre precedeu a sua análise científica e sua formulação jurídico-penal.
Julio Jeha, em seu sítio Crimes, Pecados e Monstruosidades diz que a literatura criminal se funda na tensão entre o delito e o relato. Para ele, “o crime tende ao segredo, ao silêncio, a certa margem de simulação e dissimulação, à ilusão e à construção de uma mentira”. Esclarece, ainda, que “a detecção se constrói como se fora um estudo do texto, revelando as suas estratégias de enunciação”. Jeha ressalta que cabe ao leitor emparelhar-se ao narrador na interpretação das pistas e elaborar uma hipótese que será confirmada (ou não) ao final da busca. Dessa maneira, Jeha afirma que “a narrativa policial se desenvolve em dois sentidos: em direção ao passado, quando o crime foi cometido, e em direção ao futuro, quando o enigma será solucionado”.
Pode-se notar que há uma analogia de procedimentos metodológicos estabelecida através dos tempos que fez da prática de investigação dos crimes reais uma espécie de hermenêutica: interpretação dos textos e contextos, da ocorrência, dos signos e de seu valor simbólico, do sentido das palavras proferidas pelo incriminado de forma que, aqui como no dito acerca de Menandro, parece que a vida imita a arte.
O problema a ser enfocado neste projeto é o porquê introduzir o crime no espaço ficcional, o qual parece ser um artifício, um exercício para entender os mecanismos que geram possibilidades criminosas. Para tanto, nosso objetivo será levantar a gênese e das funções do delito na ficção. Por “literatura criminal”, entendemos aquela em que ocorre uma infração da ordem, acompanhada ou não de sua descoberta e sua punição, tanto no nível diegético quanto no extradiegético.



O cronista é um escritor crônico – Affonso Romano de Sant’Anna



O primeiro texto que publiquei em jornal foi uma crônica. Devia ter eu lá uns 16 ou 17 anos. E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de Fora, passei para os jornais e revistas de Belo Horizonte e depois para a imprensa do Rio e São Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em jornal: de repórter policial a crítico literário. Mas foi somente quando me chamaram para substituir Drummond no Jornal do Brasil, em 1984, que passei a fazer crônica sistematicamente. Virei um escritor crônico.
O que é um cronista?

Luís Fernando Veríssimo diz que o cronista é como uma galinha, bota seu ovo regularmente. Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são como laranjas, podem ser doces ou azedas e ser consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa ou espremidas na sala de aula.

Já andei dizendo que o cronista é um estilita. Não confundam, por enquanto, com estilista. Estilita era o santo que ficava anos e anos em cima de uma coluna, no deserto, meditando e pregando. São Simeão passou trinta anos assim, exposto ao sol e à chuva. Claro que de tanto purificar seu estilo diariamente o cronista estilita acaba virando um estilista.

O cronista é isso: fica pregando lá em cima de sua coluna no jornal. Por isto, há uma certa confusão entre colunista e cronista, assim como há outra confusão entre articulista e cronista. O articulista escreve textos expositivos e defende temas e idéias. O cronista é o mais livre dos redatores de um jornal. Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem envergonhar-se. Seu “eu”, como o do poeta, é um eu de utilidade pública.

Que tipo de crônica escrevo? De vários tipos. Conto casos, faço descrições, anoto momentos líricos, faço críticas sociais. Uma das funções da crônica é interferir no cotidiano. Claro que essas que interferem mais cruamente em assuntos momentosos tendem a perder sua atualidade quando publicadas em livro. Não tem importância. O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele.


CRIME HEDIONDO É O QUE ATINGE A COLETIVIDADE


JOEL DE SÁ
SP, 17/06/2010.

CRIME é a prática de atos danosos e que atinge a personalidade, a estrutura mental ou a integridade física de alguém, direta ou indiretamente.
Crimes HEDIONDOS são, entretanto, os que causam mais prejuízos ao caráter e à integridade física da pessoa, e são objetos de repulsa. O vocábulo HEDIONDO é definido semanticamente como: sórdido, repugnante, horrendo.
A Lei 8072/90 destaca-o como o que causa maior aversão à coletividade. Imagina-se que haja uma manobra política para incluí-los no Código Penal, na forma especial. As personalidades envolvidas nessa manobra (parlamentares, juristas e outros técnicos), os “cuspidores de regras”, nem sempre as criam para si, mas para a “massa sem palavra” brasileira.

Qual o termômetro usado para avaliar a aplicação dessas leis, não se sabe. Os crimes considerados hediondos são estupro, assassinatos, seqüestro etc. Embora não sejam desaprovados pela sociedade, os crimes de CORRUPÇÃO, são tolerados por essa mesma sociedade. Eles fazem parte da lista dos crimes inclusos na Lei 8.072. São, entretanto, um dos crimes mais graves. A fuga de dinheiro público, só na última década, tem somado um montante de bilhões de reais.

Quantidade inúmera de crianças adoeceram por falta de atendimento médico adequado. Milhares de pais de família morreram devido ao péssimo atendimento ou pela sua inexistência. Milhões de crianças e adultos se tornaram ignorantes por deixar de frequentar escolas ou por ter sido mal assistidas nelas. Muitos jovens entraram para o crime pela falta de alternativa ou por terem sido cooptadas pelo crime organizado, que por sua vez, deixou de ser combatido pela incompetência do estado.

Os crimes de corrupção têm um efeito lento, mas devastador. Causam danos irreparáveis a toda uma comunidade, povo e nação. Os rombos aos cofres públicos reduzem ou anulam a capacidade de tirar da ignorância milhões de crianças, de curar dezenas milhares de homens e mulheres com doenças graves, de se evitar que epidemias atinjam regiões inteiras. Esses montantes sumidos “misteriosamente” do erário público impedem que a estrutura governamental funcione com eficiência para combater o crime organizado, as epidemias e a educação deficiente.

São Essas pragas que provocam enorme prejuízo, tornando o povo mais ignorante, mais doente, mais vulnerável e mais pobre, retardando o desenvolvimento do país. Na situação ideológica em que o país se encontra é um equívoco deduzir que simplesmente pelo fato de se ter ao alcance as tecnologias, acesso à escola e às informações, já termos alcançado um grau de desenvolvimento ideal.


Ler mais: http://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=137614#ixzz1kHjQzOdC
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Crimes sexuais: da antiga capação para a moderna castração química

Archimedes Marques

Todo crime sexual é acompanhado de ato depravado, sórdido, repugnante, horrendo e produz sequelas irreparáveis para as vítimas e seus familiares. Tais crimes sempre foram combatidos pela sociedade desde os tempos mais remotos.

De uma maneira geral, em quase todas as nações, os crimes de ordem sexual eram punidos nos parâmetros da Lei de Talião, ou seja, o autor sofria castigo igual, parecido ou relacionado ao dano por ele causado.

A máxima OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE fora vivenciada por muito tempo em quase todas as Leis das diversas Nações, em destarte, na Idade média através da Inquisição comandada pela própria Igreja católica.

A Lei de Talião era interpretada não só como um direito, mas até como uma exigência social de vingança em favor da honra pessoal, familiar ou tribal.

O Brasil colônia de Portugal, assim como tal, também seguia tais parâmetros punitivos para os seus diversos tipos de criminosos. As Ordenações do Reino que compunham as Leis Manuelinas, Afonsinas e Filipinas, formavam a base do sistema penal português, que por sua vez também vigoravam no Brasil. Entre as penas estavam a morte, a mutilação através do corte de membros, o degredo, o tormento, a prisão perpetua e o açoite. Até mesmo depois da sua Independência de Portugal, o Brasil continuou adotando penas não menos violentas e cruéis, seguindo de certa forma, os antigos ensinamentos de Talião na sua organização penal.

O homem que praticasse determinados atos sexuais considerados imorais ou criminosos poderia ser condenado à castração, então conhecida por capação que podia ser concretizada de várias maneiras, contanto que com o castigo o agressor não tivesse mais possibilidade de voltar a delinqüir devido a perda total do seu apetite sexual.

Buscando um caso prático para melhor ilustrar o presente texto só encontrei a suposta e inusitada Sentença Judicial datada de 15 de outubro de 1833 ocorrida na antiga Villa de Porto da Folha, hoje município, situado às margens do rio São Francisco aqui no nosso querido Estado de Sergipe. A referida Sentença que é relacionada a uma tentativa de estupro possui a linguagem arcaica da época e dizem que o dito documento está guardado no Instituto Histórico do vizinho Estado de Alagoas.

Tal sentença fora divulgada em alguns jornais virtuais e sites jurídicos do Brasil, a exemplo das páginas Ad referendum, Usina de letras, Recanto das letras, o Norte de Minas Gerais, Jus navigandi, Teologikas, Livros e afins, Estudos de direito, Fórum Jurídico, Jurisciência, Consultor Jurídico, Almanaque Brasil, Pérolas do Judiciário... Por isso a transcrevo acreditando ter sido fato real e documento verídico:

“SENTENÇA DO JUIZ MUNICIPAL EM EXERCÍCIO, AO TERMO DE PORTO DA FOLHA – 1883. SÚMULA:

Comete pecado mortal o indivíduo que confessa em público suas patifarias e seus boxes e faz gogas de suas víctimas desejando a mulher do próximo, para com ella fazer suas chumbregâncias. O adjunto Promotor Público representou contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Senhora Sant´Anna, quando a mulher de Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava de tocaia em moita de matto, sahiu dela de sopetão e fez proposta a dita mulher, por quem roía brocha, para coisa que não se pode traser a lume e como ella, recusasse, o dito cabra atrofou-se a ella, deitou-se no chão deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará, e não conseguio matrimônio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreyo Correia e Clemente Barbosa, que prenderam o cujo flagrante e pediu a condenação delle como incurso nas penas de tentativa de matrimônio proibido e a pulso de sucesso porque dita mulher taja pêijada e com o sucedido deu luz de menino macho que nasceu morto. As testemunhas, duas são vista porque chegaram no flagrante e bisparam a pervesidade do cabra Manoel Duda e as demais testemunhas de avaluemos. Dizem as leis que duas testemunhas que assistem a qualquer naufrágio do sucesso faz prova, e o juiz não precisa de testemunhas de avaluemos e assim: Considero que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento, por quem roía brocha, para coxambrar com ella coisas que só o marido della competia coxambrar porque eram casados pelo regime da Santa Madre Igreja Cathólica Romana. Considero que o cabra Manoel Duda deitou a paciente no chão e quando ia começar as suas coxambranças viu todas as encomendas della que só o marido tinha o direito de ver. Considero que a paciente estava pêijada e em consequência do sucedido, deu a luz de um menino macho que nasceu morto. Considero que a morte do menino trouxe prejuízo a herança que podia ter quando o pae delle ou mãe falecesse. Considero que o cabra Manoel Duda é um suplicado deboxado, que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quis também fazer coxambranças com a Quitéria e a Clarinha, que são moças donzellas e não conseguio porque ellas repugnaram e deram aviso a polícia. Considero que o cabra Manoel Duda está preso em pecado mortal porque nos Mandamentos da Igreja é proibido desejar do próximo que elle desejou. Considero que sua Majestade Imperial e o mundo inteiro, precisa ficar livre do cabra Manoel Duda, para secula, seculorum amem, arreiem dos deboxes praticados e as sem vergonhesas por elle praticados e apara as fêmeas e machos não sejam mais por elle incomodados. Considero que o Cabra Manoel Duda é um sujeito sem vergonha que não nega suas coxambranças e ainda faz isnoga das incomendas de sua víctima e por isso deve ser botado em regime por esse juízo. Posto que: Condeno o cabra Manoel Duda pelo malifício que fez a mulher de Xico Bento e por tentativa de mais malifícios iguais, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete. A execução da pena deverá ser feita na cadeia desta villa. Nomeio carrasco o Carcereiro. Feita a capação, depois de trinta dias o Carcereiro solte o cujo cabra para que vá em paz. O nosso Prior aconselha: Homine debochado debochatus mulherorum inovadabus est sentetia qibus capare est macete macetorim carrascus sine facto nortre negare pote. Cumpra-se a apregue-se editaes nos lugares públicos. Apelo ex-officio desta sentença para juiz de Direito deste Comarca. Porto da Folha, 15 de outubro de 1833. Assinado: Manuel Fernandes dos Santos, Juiz Municipal suplente em exercício.”

A capação feita a macete consistia em colocar os testículos do cidadão condenado em local rígido esmagando-os com um forte golpe certeiro, usando para tanto um grosso pau roliço tipo bastão ou cassetete, ou mesmo, uma marreta fabricada com madeira de lei.

Com o tempo a pena de Talião e outras cruéis desapareceram nas legislações modernas na quase totalidade dos Países, sob a influência de novas doutrinas e novas tendências humanas relacionadas com o Direito Penal, entretanto, muitas pessoas ainda defendem a volta de métodos parecidos, como fórmula eficaz para arrefecer o recrudescimento da violência urbana.

Apesar do nosso ordenamento jurídico ter abolido de vez as penas cruéis, a discussão sobre a aplicação de uma pena peculiar para aqueles que cometem crimes de ordem sexual, destarte para aqueles praticados contra crianças através da chamada pedofilia, volta a tona agora de maneira mais presente, vez que tramita no Congresso nacional o Projeto de Lei nº 552/07 de autoria do Senador Gerson Camata para propor modificação no Código Penal com a pena de castração através da utilização dos recursos químicos, ou seja, a castração química para tais criminosos. A denominada castração química consiste na aplicação de injeções hormonais inibidoras do apetite sexual, aplicadas nos testículos, conduzindo o condenado à impotência sexual em caráter definitivo e de maneira irreversível.

A proposta inspira-se em ordenamentos jurídicos estrangeiros onde a sanção é aplicada, a exemplo dos estados do Texas, Califórnia, Flórida, Louisiana e Montana nos Estados Unidos da America, em certos países da Europa e até aqui na América do Sul, na vizinha Argentina, entretanto, no Brasil, tal proposta esbarra em sérios óbices constitucionais, vez que é tema relativo ao direito fundamental à integridade física, assim como às garantias contra penas cruéis, desumanas, degradantes e perpétuas estatuídas para todos.

Para muitos legisladores, advogados e juristas a proposta é repudiada e considerada totalmente inconstitucional. Para alguns não passa de um Projeto eleitoreiro populista que visa agradar e enganar o povo, mas que vai de encontro a Constituição Federal e, por isso, mesmo que seja aprovado no Congresso nacional será desfeito pelo Supremo Tribunal Federal. Para outros a própria Carta Magna pode também ser alterada para adaptação de tal pena. Para tantos outros tal penalidade é um retrocesso à Lei de Talião, uma volta à época medieval, um atraso na humanidade, incabível no nosso ordenamento jurídico.

A discussão também gira em torno de se estudar se a castração química é uma pena cruel ou se é somente um tratamento médico, sem maiores gravidades físicas para os autores irrecuperáveis e reincidentes dos crimes sexuais, destarte para os pedófilos, que com a medida perderão apenas o libido, com grande possibilidade de não mais voltarem a delinqüir pois sem a vontade sexual não há o porque da realização do ato.

A vivencia policial e a prática profissional ao longo dos tempos nos contemplam pelo lado psicológico adquirido em casos investigados, a asseverar sem medo de errar, que geralmente os maníacos sexuais parecem não ter sentimentos de culpa e, quando chegam a confessar os crimes inerentes, discorrem como se os seus atos insanos fossem normais, negam suas carências, suas dificuldades, demonstram ser completamente desconectados com sentimentos próprios e muito menos com os sentimentos alheios, com os sentimentos das vítimas e seus familiares, por isso, quase sempre reincidem nos seus crimes quando colocados em liberdade.

É fato contundente e abominável para toda a sociedade que, no nosso pais, um quarto das vítimas de crimes sexuais são crianças com menos de dez anos de idade, porém esse debate não pode ficar apenas adstrito ao Congresso Nacional, deve se expandir para todas as camadas sociais. Advogados, juristas, doutrinadores, médicos, psicólogos, sexólogos, psiquiatras, professores, jornalistas, escritores, cronistas, religiosos e especialistas diversos devem ser ouvidos para formarem suas opiniões não só na pauta constitucional ou jurídica, quanto nas questões sociais, morais e éticas no seio da nossa sociedade.

A experiência internacional através dos países que já adotam esta moderna pena tem muito a nos ensinar, as medidas de lá que restauram frutíferas devem ser aqui adaptadas a nossa realidade e, por fim, restando possível a aplicação de tal penalidade, o mais importante: A realização de um plebiscito para o povo decidir se é a favor ou contra a castração química.

Autor: Archimedes Marques (Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela UFS) – archimedesmarques@infonet.com.br - archimedes-marques@bol.com.br - archimedesmelo@bol.com.br



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Crimes Perfeitos (da série Pequeno Dicionário de Arquétipos de Massa)

Fábio Fernandes • São Paulo, SP
1/11/2006
Júlio era o que se podia chamar de um rapaz empreendedor: com apenas vinte e quatro anos, montou seu próprio negócio. Ainda morando com os pais, um casal bonito, saudável e bem-estruturado de classe média, ele ampliou o próprio quarto, comprou um carro, saía nos fins-de-semana com os amigos. Júlio era um rapaz feliz. Um dia, porém, a rua amanheceu com as sirenes da polícia. Durante a madrugada, Júlio matou os pais a golpes de barra de ferro e facadas. Pelo menos quarenta em cada corpo. O que restou foi queimado.

Nos primeiros dias, Júlio negou, chamou um advogado. A alegação da defesa era a de que ladrões haviam invadido a residência. Não havia uma prova que confirmasse isso.
Não adiantando mais, mudou-se a estratégia. Nova alegação: perda súbita da sanidade, motivada por violenta emoção. Para justificar isso, tudo foi aventado: os pais viviam brigando, o pai tinha uma amante, a mãe também, ele apanhava quando criança. Nenhuma dessas hipóteses foi confirmada. Mas o advogado era bom. Júlio foi condenado, mas pôde cumprir a pena em liberdade por ser réu primário. Hoje, Júlio é o que se pode chamar de homem de visão: seu pequeno negócio prosperou, ele hoje é dono de uma grande cadeia de lojas, e ainda encabeça uma ONG cujo objetivo é lutar contra a violência urbana. Júlio é um homem feliz.


O CRIME (DE PLÁGIO) PERFEITO
(Rubem Braga)


Aconteceu em São Paulo, por volta de 1933. Eu fazia crônicas diárias no Diário de São Paulo e, além disso, era encarregado de reportagens e serviços de redação; ainda tinha uns bicos por fora. Fundou-se naquela ocasião um semanário humorístico, O Interventor, que depois haveria de se chamar O Governador. Seu dono era Laio Martins, excelente homem, de cabelos brancos e sorriso claro, boêmio e muito amigo. Pediu-me colaboração; o que podia pagar era muito pouco, mas eu não queria faltar ao amigo. Escrevi algumas crônicas assinadas. Depois comecei a falhar muito, e como Laio reclamasse, inventei um pretexto para não escrever. Seu jornal era excessivamente político, e eu não queria tomar partido na política paulista. Laio não se conformou: "Então ponha um pseudônimo! Prometi de pedra e cal, mas não cumpri. Laio reclamou novamente, me deu um prazo certo para lhe entregar a crônica. No dia marcado eu estava atarefadíssimo, e, quando veio o contínuo buscar a crônica para O Interventor, eu cocei a cabeça - tive uma ideia. Acabara de ler uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Minas Gerais, órgão oficial de Minas, com um pseudônimo - algo assim como Antônio João, ou João Antônio, ou Manuel Antônio, não me lembro mais; ponhamos Antônio João. Botei papel na máquina, copiei a crônica rapidamente e lasquei o mesmo pseudônimo. Dias depois recebi o dinheiro da colaboração, juntamente com o pedido urgente de outra crônica e um recado entusiasmado do Laio: a primeira estava esplêndida! Daí para frente, encarreguei um menino da portaria, que estava aprendendo a escrever a máquina, de bater a crônica de Drummond para mim; eu apenas revia para substituir ou riscar alguma referência a qualquer coisa de Minas. Pregada a mentira e praticado o crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes sentia remorso, eu o afogava em chope no bar do alemão ao lado, e o pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale de Antônio João. O remorso não era, na verdade, muito: Carlos não sabia de nada, e o que eu fazia não era propriamente um plágio, porque nem usava matéria assinada por ele, nem punha o meu nome em trabalho dele. E Laio Martins sorria feliz, comentando com meu colega de redação: "O Rubem não quer assinar, mas que importa? Seu estilo é inconfundível!" O estilo era inconfundível, e o chope era bem tirado; mas você pode ter a certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas vezes eu o bebi à sua saúde, ou melhor, à saúde de Antônio João, isto é, à nossa. Dos 25 mil-réis que Laio me pagava, eu dava 5 para o menino que batia à máquina; era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes graças ao seu trabalho: Laio, o menino, os leitores e eu - e você em Minas não era infeliz. Não creio que possa haver um crime mais perfeito.


Até mais leituras.....







SEXO, FACA E MORTE


(CRÔNICA) PostadA por Affonso Romano de Sant'Anna, em 05/06/2010, às 23:25
LINK: http://www.affonsoromano.com.br/blog/index.php




Há alguns anos o diretor de teatro, Luiz Antônio Martinez Correia (irmão de José Celso), que morava aqui perto de minha casa, em Ipanema, foi assassinado com facadas.
Há alguns anos, Aparício Basílio, artista e amigo, conhecidíssima figura do soçaite de Rio e São Paulo foi assassinado da mesma forma em São Paulo.
Há alguns anos, meu amigo Almir Brunetti, também morreu esfaqueado em Brasília, Conheci-o primeiro em New Orleans, onde ele era professor, e depois o revi várias vezes na Universidade de Brasília e no Rio.
Com algumas variantes, ocorre-me a lembrança do memorialista Pedro Nava, do editor Emanuel Brasil e do meu aluno Maurício que escreveu uma tese sobre "O duplo".
Esta semana morreu esfaqueado em Curitiba o escritor Wilson Bueno, que também conheci. Ele é autor de alguns livros instigantes, dirigiu o jornal "Nicolau" e escreveu um livro prevendo a futura mistura do português e do espanhol.
Faca, sexo e morte.
Que estranha atração imanta essas palavras e estraçalha vidas?
Que percepção patética teve Freud quando decifrou alguns dos símbolos que organizam nossas pulsões?
Pois há alguns meses li um conto de Marcus Vinícius Rodrigues intitulado "A Omoplata" e fiquei impressionado, impressionadíssimo. É um dos mais tocantes e bem escritos textos sobre essa nebulosa margem entre o crime e o amor, entre o desejo e o perigo.
Eu havia conhecido Marcus Vinícius há uns dois anos quando fizemos, com outros escritores, uma série de conferências no interior da Bahia. Mas só vim recentemente a ler aquele conto sobre a relação erótica entre um homem e um "menino". Semana passada, por coincidência, em Salvador ele assistia a uma palestra minha e me deu esse conto publicado num livrinho "Eros Resoluto" (Ed.Cartas Baianas).
O conto, como uma navalhada na carne, é de uma precisão fatal. Começa com uma indagação: "E essa cicatriz?". E faz uma pequena descrição de uma cicatriz que um dos amantes tem na omoplata. "Ele passou a mão pela omoplata esquerda do outro. Era um risco em diagonal. Começava perto do ombro, o esquerdo, e ia descendo e se aproximando da coluna. Ele estava deitado de costas na cama. O outro, de bruços sobre ele, as pernas sobre seu ombro direito, abraçado em suas pernas. Nus. Ele acariciava o corpo do outro, as coxas, a bunda, as costas, numa lenta preguiça.
-Parece que lhe arrancaram uma asa".
E o conto prossegue numa atmosfera ambígua, difusa em que sexo, ameaça e perigo se atraem.
A cicatriz parece feita com faca. É uma sugestão. O texto é cortante. O menino parecia um anjo e um anjo perverso. Corpos e mentiras se entrelaçam. A cicatriz lembrava corte de faca, mas podia ser o esforço para se implantar ali uma asa de anjo. Tudo era falso e verdadeiro: "encontrado na rua, um menino que poderia ser um assaltante, tão falsa aquela história do colégio de freiras" que teria originado a cicatriz.
E a história vai para seu desfecho trágico, não narrado diretamente, mas sutil e inteligentemente sugerido. Depois de diálogos, brincadeiras, ameaças veladas e declarações de amor, o personagem dirige-se à cozinha onde nota a ausência de uma faca. "Na ordem absoluta havia apenas uma falha: a gaveta de talheres imperceptivelmente entreaberta. Um alarme estourou na sua cabeça. Ele não abriu a gaveta, mas o que não via se mostrava nítido em seus olhos. Parecia tão claro. Todas as cenas voltaram como um relâmpago. As conversas. Tudo em velocidade, até um momento se fixar. O sorriso do menino tilintando atrás de uma frase:
-Quem te salva?
Ele lembrou. Num instante rápido, quis que nada disto tivesse acontecido, queria não ter se deixado levar por... Devia ter tomado mais cuidado. Queria retroceder, escapar, mas tinha ido longe demais, já estavam num ponto em que não se pode mais voltar".

(*) Estado de Minas/ Correio Braziliense




O AUTOR DE SI MESMO, DE MACHADO DE ASSIS


Esta Crônica de Machado de Assis foi Publicada em 16/06/1895, em A Semana, p. 655-657.


Guimarães chama-se ele; ela, Cristina. Tinham um filho a quem puseram o nome de Abílio. Cansados de lhe dar maus-tratos, pegaram do filho, meteram-no dentro de um caixão e foram pô-lo em uma estrebaria, onde o pequeno passou três dias, sem comer nem beber, coberto de chagas, recebendo bicadas de galinhas, até que veio a falecer. Contava dois anos de idade. Sucedeu este caso em Porto Alegre, segundo as últimas folhas, que acrescentam terem sido os pais recolhidos à cadeia, e aberto o inquérito. A dor do pequeno foi naturalmente grandíssima, não só pela tenra idade, como porque bicada de galinha dói muito, mormente em cima de chaga aberta. Tudo isto, com fome e sede, fê-lo passar "um mau quarto de hora", como dizem os franceses, mas um quarto de hora de três dias, donde se pode inferir que o organismo do menino Abílio era apropriado aos tormentos. Se chegasse a homem, dava um lutador resistente, mas a prova de que não iria até lá, é que morreu.
Se não fosse Schopenhauer, é provável que eu não tratasse deste caso diminuto, simples notícia de gazetilha. Mas há na principal das obras daquele filósofo um capítulo destinado a explicar as causas transcendentes do amor. Ele, que não era modesto, afirma que esse estudo é uma pérola. A explicação é que dois namorados não se escolhem um ao outro pelas causas individuais que presumem, mas porque um ser, que só pode vir deles, os incita e conjuga. Apliquemos esta teoria ao caso de Abílio.
Um dia Guimarães viu Cristina, e Cristina viu Guimarães. Os olhos de um e de outro trocaram-se, e o coração de ambos bateu fortemente. Guimarães achou em Cristina uma graça particular, alguma cousa que nenhuma outra mulher possuía. Cristina gostou da figura de Guimarães, reconhecendo que entre todos os homens era um homem único. E cada um disse consigo: "Bom consorte para mim!". O resto foi o namoro mais ou menos longo, o pedido da mão da moça, as formalidades, as bodas. Se havia sol ou chuva, quando eles casaram, não sei; mas, suponho um céu escuro e o vento minuano, valeram tanto como a mais fresca das brisas debaixo de um céu claro. Bem-aventurados os que se possuem, porque eles possuirão a terra. Assim pensaram eles. Mas o autor de tudo, segundo o nosso filósofo, foi unicamente Abílio. O menino, que ainda não era menino nem nada, disse consigo, logo que os dois se encontraram: "Guimarães há de ser meu pai e Cristina há de ser minha mãe; é preciso que nasça deles, levando comigo, em resumo, as qualidades que estão separadas nos dois". As entrevistas dos namorados era o futuro Abílio que as preparava; se eram difíceis, ele dava coragem a Guimarães para afrontar os riscos, e paciência a Cristina para esperá-lo. As cartas eram ditadas por ele. Abílio andava no pensamento de ambos, mascarado com o rosto dela, quando estava no dele, e com o dele, se era no pensamento dela. E fazia isso a um tempo, como pessoa que, não tendo figura própria, não sendo mais que uma idéia específica, podia viver inteiro em dois lugares, sem quebra da identidade nem da integridade. Falava nos sonhos de Cristina com a voz de Guimarães, e nos de Guimarães com a de Cristina, e ambos sentiam que nenhuma outra voz era tão doce, tão pura, tão deleitosa.
Enfim, nasceu Abílio. Não contam as folhas cousa alguma acerca dos primeiros dias daquele menino. Podiam ser bons. Há dias bons debaixo do sol. Também não se sabe quando começaram os castigos, — refiro-me aos castigos duros, os que abriram as primeiras chagas, não as pancadinhas do princípio, visto que todas as cousas têm um princípio, e muito provável é que nos primeiros tempos da criança os golpes fossem aplicados diminutivamente. Se chorava, é porque a lágrima é suco da dor. Demais, é livre — mais livre ainda nas crianças que mamam, que nos homens que não mamam.
Chagado, encaixotado, foi levado à estrebaria, onde, por um desconcerto das cousas humanas, em vez de cavalos, havia galinhas. Sabeis já que estas, mariscando, comiam ou arrancavam somente pedaços da carne de Abílio. Aí, nesses três dias, podemos imaginar que Abílio, inclinado aos monólogos, recitasse este outro de sua invenção: "Quem mandou aqueles dois casarem-se para me trazerem a este mundo? Estava tão sossegado, tão fora dele, que bem podiam fazer-me o pequeno favor de me deixarem lá. Que mal lhes fiz eu antes, se não era nascido? Que banquete é este em que o convidado é que é comido?".
Nesse ponto do discurso é que o filósofo de Dantzig, se fosse vivo e estivesse em Porto Alegre, bradaria com a sua velha irritação: "Cala a boca, Abílio. Tu não só ignoras a verdade, mas até esqueces o passado. Que culpa podem ter essas duas criaturas humanas, se tu mesmo é que os ligaste? Não te lembras que, quando Guimarães passava e olhava Cristina, e Cristina para ele cada um cuidando de si, tu és que os fizeste atraídos e namorados? Foi a tua ânsia de vir a este mundo que os ligou sob a forma de paixão e de escolha pessoal. Eles cuidaram fazer o seu negócio, e fizeram o teu. Se te saiu mal o negócio, a culpa não é deles, mas tua, e não sei se tua somente... Sobre isto, é melhor que aproveites o tempo que ainda te sobrar das galinhas, para ler o trecho da minha grande obra, em que explico as cousas pelo miúdo. É uma pérola. Está no tomo II, livro IV, capítulo XLIV... Anda, Abílio, a verdade é verdade ainda à hora da morte. Não creias nos professores de filosofia, nem na peste de Hegel...
E Abílio, entre duas bicadas: Será verdade o que dizes, Artur; mas é também verdade que, antes de cá vir, não me doía nada, e se eu soubesse que teria de acabar assim, às mãos dos meus próprios autores, não teria vindo cá. Ui! Ai!1
O CRIME DO AÇOUGUEIRO, DE MÁRIO PRATA
O ESTADO DE S. PAULO 26/01/00


Quem me contou essa história foi o Mario Palmério. O Mario que morreu há pouco tempo, o Mario igualmente lá de Uberaba, Minas.
Depois de descrever o Chapadão do Bugre lá na Vila dos Confins, depois de virar deputado federal e depois de entrar para a Academia Brasileira de Letras, largou tudo, comprou um barco e uma índia e ficou uns oito anos subindo e descendo o Amazonas, pensando e fazendo bobagens (no bom sentido, como deve ser toda bobagem).
Parava naquelas cidadezinhas, ficava uns dias, ouvia uns casos. Nunca me disse se pretendia escrever um livro tipo Igarapé do Bugre ou Vila dos Manaus. Mas contava - oralmente - casos amazonenses.

Um dia, deitado na sua rede na fazenda lá em Uberaba, relaxava seu corpo alto, suas melenas brancas e longas e coçava o saco. O Mario adorava andar nu. Seu lado índio. Acho que ele tinha um pé na selva amazônica. O caso que ele contou:
A cidade do interior do Amazonas era pequena. Uns cinco mil habitantes. Tinha lá um açougueiro chamado Lázaro (mais pra frente você irá sentir a ironia do nome). Pelo menos o ficcionista disse que ele se chamava Lázaro. E o Lázaro tinha uma bela mulher chamada Maria. Sim, chamada, porque diz o Mario que era chamar que ela ia. Danada, a Maria.

Eis que Maria arrumou um amante. Um amante fixo. O nome dele era Ovídio e vivia da pesca. Sem trocadilho nenhum, Ovídio pescou Maria e a envolveu em sua rede.
Cidade pequena, alguém foi contar para o Lázaro. Até que um dia Ovídio entrou no açougue. O Lázaro pegou aquela machadinha do ofício e, enquanto ia desferindo violentos golpes no tronco de cortar carne, ia dizendo, pelas palavras mineiras do Mario Palmério:

- Olha, moço: minha Maria não é peixe para seu anzol. Você vai pescar noutra freguezia. Aliás, se aceita um convite, pegue seu barco e suma da cidade (passava a lima no corte do machado e desferia mais golpes). Ou então, pare com essas suas andanças que a Maria prefere carne a peixe.

Ovídio ouvia tudo de olho na machadinha. Diz o Mario que chegou a pedir desculpas e que ele não se preocupasse que ele ia sumir do pedaço.

Ovídio não se mudou, mas deixou a Maria que voltou a viver numa boa com o marido. Mas, com o passar do tempo, as carnes de Maria voltaram para a cabeça do peixeiro amante. E Ovídio voltou ao pedaço, já se esquecendo da machadinha.

Novamente o alcoviteiro foi aos ouvidos do Lázaro. Era de manhã e o sangue subiu pra cabeça do homem. Pegou a machadinha e partiu célere para a casa do comborço. Ao atravessar a pracinha, ouviu a notícia. Seu inimigo havia morrido de madrugada. Ataque do coração.

Voltou para o serviço. Aquele desgraçado estava morto, não ia mais incomodar sua mulher. Mas a necessidade da vingança não saía da cabeça dele. Pegou de novo a machadinha e foi até o necrotério. Ia decepar a cabeça do Ovídio, mesmo morto. Ia mostrar para a cidadezinha quem é que era o dono da Maria.

Chegou lá e foi fácil achar o corpo do defunto que aguardava a autópsia. Ficou olhando para aquele corpo frio, aquele amontoado de carne. Não satisfeito em cortar a cabeça do sujeito, antes, porém, resolveu dar uma surra no morto.

Segurou o pescoço do corpo inerte e começou a bater a cabeça dele na laje fria. Sacudindo, xingando, com ódio.

E agora, acredite quem quiser: com aquelas porradas todas o Ovídio voltou à vida. Lázaro ressuscitou o morto. Depois teríamos a explicação médica: havia sido um caso de catalepsia.

O morto acordou apanhando do marido e saiu por uma porta, nu, correndo. Lázaro, com a machadinha na mão, saiu pela outra porta correndo mais ainda e nunca mais foi visto na amazônia. Ovídio está casado com Maria, vivem muito bem. E tiveram um filho que se chama Lázaro.

E, me disse o Mario Palmério, a Maria anda toda ressabiada pelo Agenor, o novo açougueiro.

TEXTO - A crônica antropológica: literatura e ciência

O texto que você, leitor, irá se direcionar e ler, encontra-se no link http://www.logos.uerj.br/PDFS/anteriores/logos13.pdf

Você conhecerá o texto A crônica antropológica: literatura e ciência, da autoria da antropóloga Fátima Quintas, e publicado na Revista LOGOS - Comunicação & Universidade, volume 13, página 33 -41.

O artigo de Fátima Quintas enfatiza a crônica antropológica como um documento singularizado pela subjetividade e pelo valor estético literário.

Boa leitura e aguardo excelentes comentários!

Abraçpo,
Profa. Dra. Generosa Souto
Unimontes.

DESCONSTRUINDO SÍSIFO: O TEMPO KAIRÓTICO DA CRÔNICA


Prof. Dr. Gerson Tenório dos Santos

Texto publicado na REVISTA KALÍOPE, São Paulo, ano 3, n. 1, p. jan./jun., 2007.


RESUMO: O objjetivo deste artigo é diswcutir a complexa relação existente na crônica entre o tempo cronológico e o tempo kairótico, uma vez que, como um gênero curto, leve, despretensioso e apegado às minudências do mundo cotidiano urbano, a crônica não pretende somente fazer um retrato do real, um flagrante dos acontecimentos cotidianos nas grandes cidades, mas também problematizar nossa angustiantev relação com o tempo desgastante das ações rotineiras, instaurando sub-repticiamente momentos de grande lirismo e poesia e propiciando nossa participação no tempo criativo tematizado pelos grandes mitos da cultura.

ABSTRACT: The aim of this article is to discuss the complex relation inside the chronicle between the chronological and kairotic time, once as a short, light, unpretentious and linked to the ordinary events of the urban world the chronicle do no intend only to portrait the real world, to register the facts of the great cities quotidian, but also to put in focus our anguishing relationship with the tiring time of the routine actions, creating subrepititiously moments of great lyrism and poetry and propitiating our participation in the creative time has been theme of the great myths of culture.




A crônica, tida como um gênero tipicamente brasileiro, já foi considerada um gênero menor. Isto porque se trata de um gênero narrativo que explora as minudências do real, é curto e despretensioso. Filha do jornal, a crônica tem quase um consumo imediato, servindo para tirar a carga pesada de tantas notícias ruins que lemos em jornais e revistas, já que quase sempre tem um tom humorístico ou tende à leveza. Justamente este caráter de leveza, de cotidianidade, de texto que se pode ler em uma sentada – como diria Poe em sua Filosofia da composição a respeito da poesia – revela traços marcantes quando nos pomos a olhá-la mais de perto. Uma desses traços está na problemática do tempo – a essência de toda crônica –, pois ao trabalhar com o tempo cronológico, o tempo das ações cotidianas, a crônica as coloca em xeque, lançando sobre elas um olhar novo que as reveste de novos significados.


A crônica e o jornal


A crônica, como indicia seu nome, é um gênero devotado ao tempo. O mesmo acontece com o jornal, cuja etimologia remete à palavra dia. Não à toa jornal e crônica há muito se associaram rendendo frutos que colhemos até hoje. No Brasil, diferentemente de outros países, a crônica seguiu um caminho diferente, tornando-se um gênero mais literário que informativo e argumentivo. Nem por isso deixou de se alimentar das notícias divulgadas em jornais, revistas, telejornais e outros meios de comunicação de massa.



A razão de ser do jornal está na divulgação dos acontecimentosdiários, que, pretensamente, são vendidos como verdadeiros, inegáveis e imparciais. Ao dar conta do real por meio da palavra escrita ou falada, divulgada nos mais diferentes meios de comunicação, a tarefa do jornal é informar sobre a infindável quantidade de fatos que nos cercam e nos afetam cotidianamente, abarrontando nossa mente de tanta informação e realidade. O jornal não nos deixa esquecer ou nos evadir de nosso dia-a-dia. Desta forma, a labuta do jornalista se assemelha ao árduo e infindável trabalho Sísifo. No mito grego, ao desobedecer Zeus, Sísifo recebe um castigo torturante e eterno: rolar uma pedra até o topo de uma montanha, até que a mesma desça montanha abaixo e o pobre coitado tenha que levá-la de novo até o topo da montanha e esta novamente retorne à base, sendo reconduzida infinitamente para o alto. O mito de Sísifo ilustra o interminável trabalho de contar e recontar cotidianamente os acontecimentos que se sucedem num aparente sem-fim. Assim, devido aos seus inúmeros expedientes linguísticos que criam a ilusão de estarmos diretamente em contato com os acontecimentos que nos cercam, como a ausência de autor e modalizadores, verbos no indicativo, uso de dêiticos e marcadores de tempo, o jornal cria a sensação de estarmos sendo engolfados pelos fatos brutos e pelo tempo.




Embora a crônica tenha também como objeto as ações cotidianas, sua relação com leitor é completamente diferente das notícias de jornal. Em primeiro lugar, em contraponto à sisudez e à dureza das notícias nos mostra a leveza, o lirismo, o humor do dia-a-dia massificado das grandes cidades, que só podem ser flagrados nos interstícios das notícias. Em segundo lugar, a crônica opera um deslocamento no tempo da notícia e, por extensão, no tempo de nossas ações cotidianas. Convidando-nos a um relaxamento, a uma breve suspensão de nossos afazeres e de nossos hábitos tão urbanamente arraigados, a crônica possibilita uma reconfiguração do tempo, permitindo ao seu leitor uma participação inclusiva não considerada no tempo da notícia. Desta forma, diferentemente do que ocorre com a notícia, o leitor passa de observador a participante, de mero espectador a co-partícipe, ressignificando sua relação com o tempo cotidiano.


Kronos, o alimento da crônica


Devido ao fato de estar intimamente vinculada ao jornal e à revista, o tempo da crônica é visceralmente o tempo presente, ou seja, ela faz dos instantes captados pelos acontecimentos publicados nestes veículos sua razão de ser. Embora muitas crônicas tenham sido reunidas na forma de coletâneas publicadas em livros e estejam fartamente presentes em inúmeros livros didáticos, seu portador primeiro foi a página do jornal ou da revista. Assim, o tempo da crônica está intrinsecamente atrelado ao tempo destes meios de comunicação. E, como sabemos, o tempo da notícia é extremamente breve. Depois de lida, a notícia perde seu frescor e vitalidade. Desta forma, também a crônica sofre do mesmo mal. A crônica não aspira à eternidade, como acontece com outros gêneros literários, porque o seu alimento é o mesmo das notícias cotidianas. É um texto feito para um certo tempo, para ser lido rapidamente e, na maioria das vezes, entreter, suavizar a aspereza do real.



Assim, a crônica assume que seu material de trabalho é o tempo cronológico, o tempo que esvai, se desgasta, o tempo das ações banais cotidianas. Em termos de uma linguagem religiosa, pode-se dizer que o tempo da crônica é o tempo profano, o da miríade de acontecimentos sem densidade de significado. Não à toa o tempo cronológico foi identificado metaforicamente com o deus Crono da mitologia grega.



Para alguns estudiosos, embora o nome do deus Krónos nada tenha a ver com Khrónos, o tempo personificado em grego, por uma questão de jogo de palavras, por uma espécie de homonímia forçada, Crono foi identificado com o tempo que flui, que passa. Para outros, no entanto, o conceito de tempo cronológico está intimamente vinculado ao mito de Crono. Crono, na mitologia grega, é filho mais moço de Géia, a terra, e de Urano, o céu, e pai de Zeus. Ao contrário da maioria dos deuses, ele não representava um lugar, acontecimento, função ou qualidade. Crono pertencia à raça dos deuses conhecidos como titãs. Temendo que seus filhos fossem derrubá-lo, Urano, tão logo nasciam os filhos, devolvia-os ao seio materno. Géia então resolveu libertá-los e pediu aos filhos que a vingassem e a livrassem do esposo. Todos se recusaram, exceto o caçula, Crono, que odiava o pai. Géia entregou a Crono uma foice e quando Urano se deitou à noite sobre ela, Crono cortou-lhe os testículos. Com a façanha de Crono, Urano (Céu) separou-se de Géia (Terra). Crono tomou então o lugar do pai, casando-se com Réia. Ao assumir o poder, Crono tornou-se um déspota pior que seu pai. Temendo ser destronado por um de seus filhos, como haviam predito Urano e Géia, depositários da mântica (conhecimento do futuro), passou a engoli-los à medida que nasciam. Somente Zeus escapou. Grávida deste, Réia fugiu para Creta e deu à luz o caçula. Para enganar o marido, envolveu pedra em panos de linho, que foi dada a ele como se fosse a criança. O deus imediatamente a engoliu. Ao atingir a idade adulta, Zeus ajudou seus irmãos e irmãs a fugirem. Juntos, depuseram Crono, e Zeus tornou-se o rei dos deuses.



Crono, a exemplo do tempo, devora ao mesmo tempo em que gera. A essência do tempo cronológico, em sua infindável remessa de instantes, acontecimentos, dramas, é a constante e voraz consumação, dando lugar a novos acontecimentos, que, por sua vez, também serão devorados para que outros se sucedam.


Com a crônica acontece o mesmo. Uma crônica sempre dará lugar a outra. Pouco ou quase nada de sua história continuará. Como afirma Machado de Assis em O nascimento da crônica, um meio certo de começar uma crônica é por meio de uma trivialidade, como dizer “Que calor!”. O trivial, o aspecto mais mundano de nosso dia-a-dia é o que forma o corpo da crônica. A crônica não trata de personagens virtuosos, exemplares, ou mesmo de acontecimentos grandiosos, pois na crônica não há tempo e nem espaço para a grandiloleqüência, a exemplaridade. O tempo que foge, que escapa, que se sucede na interminável cadeia de momentos é a principal personagem deste gênero.



Outro aspecto interessante ligado ao tempo na crônica diz respeito ao uso de uma linguagem que tende ao oral. É muito comum na crônica o uso somente de diálogos e de um registro muito próximo ao utilizado pelas pessoas em seu dia-a-dia mais banal. Machado de Assis na crônica já citada, por exemplo, diz: “Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações”. Este uso do linguajar popular aproxima cronista e público, encurtando a distância existente entre o tempo do narrador, o tempo da narrativa e o tempo da recepção. A crônica funciona como um diálogo direto, que embora realizado em texto escrito, cria a ilusão de uma aproximação, um encontro íntimo entre amigos. Não à toa Vinícius de Moraes afirma em O exercício da crônica que o cronista faz uma prosa fiada ao contrário da prosa de um ficcionista, que é “levado meio a tapas pelas personagens e situações que, azar dele, criou por que quis”.



Porém, é preciso entender que a crônica é antes de tudo literatura e que como literatura sua intenção não é somente divertir, apresentar os fatos cotidianos como gotas de chuva num dia quente. Por detrás desta aparente despretensão e leveza da crônica há bem mais do que supõe nossos olhos cansados de espreitar o real pela janela das notícias de jornal.


Kairós, o tempo criativo


A crônica, a despeito de sua simplicidade, possui um núcleo de tensão. Diferentemente do conto, que tem uma densidade específica, um conflito único limitado geralmente a um só ambiente e contendo um número reduzido de personagens, a crônica não busca a exemplaridade de um instante da condição humana. Geralmente, é o oposto que se dá. A crônica se interessa pelo aparentemente desinteressante, pelo pitoresco, pelas bordas do que é notícia. Embora seu alimento seja o tempo das ações cotidianas, sua essência é o tempo dentro do tempo cronológico.



Como vimos, a crônica é literatura, uma arte verbal cujo principal objetivo é oferecer aos seus leitores uma outra construção do real, o mundo paralelo do pode ser, permitindo ao homem não só suportar as contingências do mundo concreto como criar pela imaginação possibilidades que atuam logicamente alargando sua visão de mundo e sua ação na realidade.



Porém, a crônica se vale de uma atitude matreira e dúbia. Se, por um lado, dialoga implícita ou implicitamente com o texto jornalístico, cuja principal característica é oferecer aos seus leitores a impressão de que tudo que lêem é a mais pura realidade, por outro desconstrói tais acontecimentos e subverte a perspectiva do tempo. O jornal busca apresentar os fatos do mundo cotidiano como verdadeiros, concretos e, conseqüentemente, em oposição aos inventados, criados pela imaginação de um autor/narrador. O tempo do jornal, desta forma, é o tempo cronológico quantitativo observável por suas marcas de sucessividade na paisagem espacial da realidade. Por outro lado, o narrador-repórter da crônica, com sua linguagem leve, cotidiana, como se fosse uma conversa de bar, envolve o leitor, convidando-lhe a olhar o real tão massificado pela linguagem jornalística de uma forma diferente. E especialmente o tempo, o principal personagem da crônica, reveste-se de significado completamente diferente. Podemos dizer que a vida nos centros urbanos é marcada por uma rapidez e por uma superficialidade como nunca experimentadas pelo homem.



A linguagem jornalística também acompanhou este movimento. É rápida, seca, breve e se contenta somente em informar os aspectos considerados mais importantes dos fatos cotidianos. Assim, notícia de jornal não tem substância, não tem relevo, pois não penetra nas águas abissais da realidade humana a fim de revelar o absurdo do
viver, o humor por detrás das tragédias, a poesia aninhada nos acontecimentos banais da cotidianidade, a beleza insondável dos instantes de alegria, a riqueza de percepção que subjaz ao instante, temas tão constantes em inúmeras crônicas.



O tempo da crônica, assim, é um tempo forte, um tempo que vê nas brechas do tempo cronológico a possibilidade de se revivificar a leitura do real. Em termos bíblicos, poderíamos associar este tempo
ao kairós. Esta palavra grega, que contrasta com chronos, o tempo quantitativo, é usada para denotar qualquer propósito prático em que se apresenta uma boa ocasião para ação. Em termos religiosos, como usado por muitos protestantes, “falamos do momento em a história, em termos de uma situação concreta, amadureceu até o ponto de poder receber a irrupção da manifestação central do Reino de Deus. O Novo Testamento chamou a esse momento de ‘plenitude do tempo’”(...) (TILLICH 1984,p 666). Ou seja, o kairós um tempo de renovação, de criação em que, do ponto de vista religioso, a manifestação da divindade se faz plena e possibilita a dinâmica da auto-transcendência da história. Essa dimensão do kairós apresenta-se mesmo sub-repticiamente nas crônicas mais leves e humorísticas, pois o humor é uma forma de flagrar o real em seu despropósito, em seu caráter inusitado e surpreendente.



O próprio cronista tem clareza desse caráter em seu ofício. Affonso Romano de Sant’Anna, por exemplo, em sua metacrônica O cronista é um escritor crônico (In Para gostar de ler, v. 16) diz-nos que o cronista é um estilita (recomenda que não se confunda com estilista), que era o santo que ficava anos e anos em uma coluna, no deserto meditando e pregando. Termina sua crônica dizendo: “O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele”. Walcyr Carrasco, um dos cronistas mais recentes, descobre essa densidade temporal no poder do humor fazer-nos vivos, como nos revela sua crônica O cronista acidental (In Para gostar de ler, v. 20): “Hoje, não viveria sem minhas crônicas. Aprendi muito com elas. A observar o dia-a-dia com um crivo mais agudo. A buscar graça na loucura cotidiana. A rir, até de mim mesmo. (...) Descobri, enfim, que a crônica é uma coisa viva. E até nos momentos mais críticos a gente sempre pode dar uma boa risada”.



Podemos notar que este caráter subversivo, restaurador do tempo kairós está presente de uma forma mais explícita ou mais implícita nas inúmeras crônicas que lemos diariamente. Como exemplo de sua manifestação explícita, podemos citar a famosa crônica A última crônica, de Fernando Sabino. Esta crônica tem como motivo inicial o constante tema da falta de assunto. Num bar na Gávea, a caminho de casa, o cronista relata seu desejo de “coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um”. E enquanto toma seu café lembra-se do verso do poeta: “assim eu quereria o meu último poema”. E ao lançar o olhar em torno de si, onde diz vivem os assuntos que merecem uma crônica, Fernando Sabino escreve uma das crônicas mais pungentes da literatura brasileira, uma crônica que arrebata e emociona, revelando na banalidade do cotidiano uma cena que fala aos nossos corações e mentes.



A cena da família de pretos que vai ao bar comemorar o aniversário da menina com um pedaço de bolo comprado ali e com velinhas trazidas de casa revela a dignidade e densidade de um momento que se traduz na pureza do sorriso do preto para o cronista. Nesta crônica, a relação com o tempo kairós é direta: a menção à ultima crônica do ano, assim como a referência ao tempo da celebração do aniversário da menina remetem-nos diretamente ao tempo da renovação, ao tempo ritualístico da criação. Em meio ao banal, à dispersão alucinante do cotidiano de uma cidade grande, a cena traduzida pelos olhos sensíveis do cronista-poeta instaura um ritual de purificação do qual o leitor é convidado a participar. A pobreza da família de negros e a simplicidade da situação falam-nos da humildade, da ausência de status que estão presentes nos mais diversos rituais de passagem dos povos de todos os tempos. O convite à participação do ritual simples e despojado promove uma identificação que suspende o tempo das ações cotidianas e faz com que sejamos co-partícipes, junto com o poeta, da celebração da vida e da dignidade humana.



Outro exemplo desta presença explícita do tempo kairótico na crônica pode ser encontrado em outra crônica bastante famosa: Recado ao Senhor 903, de Rubem Braga. Escrita na forma de uma carta de um vizinho de apartamento a outro que se queixava contra o barulho, Rubem Braga se utiliza de uma fina ironia para fazer uma crítica atroz à sociedade autoritária, reificadora e esvaziadora das identidades humanas. Remetendo-se o tempo todo a números que substituem as pessoas na sociedade atual, Rubem Braga, no final da crônica, prometendo silêncio ao seu vizinho desconhecido, revela seu desejo de sonhar com outra vida em que as pessoas pudessem viver em comunhão:



...Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro
mundo, em que um homem batesse à porta do outro e
dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música
em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entra,
vizinho e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui
estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a
vida é curta e a lua é bela”. E o homem trouxesse sua mulher,
e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho
entoando canções para agradecer a Deus
o brilho das estrelas e o murmúrio da
brisa nas árvores, e o dom da vida,
e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.



Claramente, este trecho faz referência à cena bíblica da eucaristia, uma típica experiência kairótica, e revela o desejo de comunhão dos homens num mundo sacralizado. O tempo do sonho divide claramente o mundo cotidiano dessacralizado da transformação do homem em números, em coisa daquele da comunhão, da participação humana na criação sagrada.


Como exemplo de crônicas que trabalham implicitamente o tempo kairós, podemos citar Férias das férias, de Walcyr Carrasco. Se os cronistas mais representativos da literatura brasileira são cariocas, Carrasco destoa do grupo e centra-se basicamente no cotidiano dos paulistas. Tipicamente humorista e sagaz observador do comportamento dos moradores de São Paulo, dificilmente poderíamos dizer que suas crônicas são poéticas, líricas ou reflexivas. Porém, Carrasco assim mesmo convida-nos a redimensionar e rever ações nas quais não prestamos, às vezes, muita atenção, como ocorre na crônica citada. Férias das férias retrata as complicações, dificuldades e desconfortos de umas férias na praia, um dos prazeres dos paulistanos. Ao elencar com humor e uma dose de sardonismo as peripécias das férias frustradas de uma família paulistana ao alugar uma casa na praia de Boiçucanga, o autor problematiza não só uma atividade de lazer tão cara ao paulistano, como põe em cheque a própria idéia de que o lazer se dá necessariamente fora do ambiente doméstico. Ao suspender nossos juízos tão fortemente arraigados a respeito do uso do tempo livre, Carrasco nos revela a prisão a que somos submetidos cotidianamente pela indústria do lazer e nos faz ver que, muitas vezes o tempo doméstico é o tempo da reconciliação e do descanso merecido pelo tempo gasto
no trabalho. Longinquamente poderíamos perceber, nesta crônica, ecos do sabá, o tempo do descanso religioso que os judeus observam no sétimo dia da semana.



Outro exemplo em que há implicitamente a presença do kairós é a crônica A bola¸ do gaúcho Luís Fernando Veríssimo. Veríssimo também é bastante conhecido por suas crônicas humorísticas e irônicas. Nesta crônica, Veríssimo ironiza os tempos modernos em que as crianças só sabem lidar com jogos eletrônicos e contrapõe o tempo do pai ao tempo do filho. Na crônica, o filho é bom num jogo em que a bola é um blip eletrônico, mas desconhece o funcionamento de uma bola real. Implicitamente a valorização do tempo antigo, representado pelo prazer que o pai sentia ao lembrar-se da bola de couro que ganhara de seu pai, em contraposição ao tempo moderno dos jogos eletrônicos também possui um componente altamente simbólico. Podemos divisar aqui o mito da idade de ouro. Segundo este mito contado por Hesíodo em O trabalho e os dias, houve uma época no tempo de Crono em que os deuses imortais fizeram uma raça de ouro de homens mortais, que à semelhança dos deuses viviam com o coração livre de tristezas e longe de trabalhos e pesares. Possuíam todas as coisas boas, e a terra lhes dava frutos abundantes. A esta idade havia se seguido a de Prata, de Bronze, dos Heróis e de Ferro, a mais decadente de todas. Quanto mais decadente, mais o homem afasta-se do paraíso da Idade de Ouro. A crônica, ao lamentar a decadência do mundo moderno, busca instaurar na relação do homem com o passado, simbolizado pela bola – que também é símbolo do cosmos –, uma integração total em que ação e conhecimento estão em íntima sintonia. A crônica, assim, numa narrativa leve e despretensiosa, coloca para nós, pais e filhos da época atual, a necessidade de se reviver e de se restaurar uma era em que a relação do homem com
a natureza é integradora e plena de abundância.



Considerações finais



A crônica, como vimos, é um gênero literário complexo. Por trás de sua aparente simplicidade, de seu tom leve e brincalhão, de seus temas tão banais e cotidianos, flagramos um texto literário afeito ao oral, à narrativa artesanal curta, divertida e problematizadora da perspectiva ordinária de nosso tempo cronológico. Num tom despretensioso, o narrador envolve o leitor e o convida a descortinar a dimensão densa do real que subjaz aos acontecimentos rápidos e superficiais que nos desumanizam dia a dia. Ao trabalhar com o tempo kairótico, a crônica nos revela que a força vivificante do mito e da poesia pode subsistir nos terrenos mais áridos e num espaço tão pouco fértil como os das grandes cidades.


A crônica nos ensina a extrair do tempo massificado, rotineiro e exaustivo um sopro de ar revitalizante e insiste em nos dizer que no coração de tempo cronológico das ações rotineiras urbanas habita o tempo kairótico, um tempo denso e profundo, centelha de poesia, esperança e renovação.



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